De tempos em tempos, ela era assassinada.
Por vezes com requintes de crueldade (des)humana.
Propositais e premeditados, lhe deixavam cicatrizes profundas na alma.
Por vezes, pequenos assassinatos, desses que os seres
(des)humanos cometem todos os dias contra quem lhes abre a porta da vida e os
convida para entrar.
A intensidade da dor de cada morte era sempre proporcional á
parcela de vida que cada morte levava consigo.
Alguns mistérios deveriam ser de conhecimento do mundo: a
vida de cada ser é semelhante a um mosaico. Cada mosaico pessoal é feito de
inúmeras pedras coloridas – algumas de tom escuro, e a composição do desenho
dessas pedras formam o todo de cada vida e mantém o mosaico inteiro. Ai reside
o segredo.
A cada assassinato, roubavam-lhe uma pedra. Por vezes, a cor
da pedra era a de um sonho; por vezes uma esperança, uma crença, um sorriso. E,
por vezes, quebravam-lhe o mosaico inteiro.
Nessas ocasiões, punha-se ela teimosamente a juntar cada uma
das pedras (creio que até colar algumas que encontrava quebradas), e refazer
sua alma-mosaico. Algumas se estraçalhavam de tal forma que, feito farelos,
ficavam perdidas pelo chão e tornavam-se pó levado pelo vento. O mosaico,
então, não voltava jamais a sua forma original.
(mal sabem os assassinos que é impossível matar de uma só
vez uma mulher que leu Kafka desde menina)
“olhos de cão azul”, dizia ela ao despertar do pesadelo –
embora ‘o homem’ não fizesse parte dele. E recordava das mulheres Buendia de
Garcia Marquez, do anjo que caiu no galinheiro e da avó desalmada de Cândida
Erendia.
Por vezes, quando a dor era maior, tentava recordar das
muitas vitórias que havia conquistado um dia – num passado nem tão distante, e
sorria pensando nos assassinatos aos quais sobrevivera.
“a desilusão enfraquece aos fracos; aos fortes, ela serve de
alicerce”. A frase ouvida na adolescência era seu lema.
Mas, de tempos em tempos, ela era assassinada.
Com o tempo, as recordações de quem havia sido deixaram de
ser suficientes para que cuidasse das feridas. As cicatrizes invisíveis
voltavam a provocar dor.
Então, toda a vez que sofria um novo pequeno (ou grande)
assassinato, percebia-se mais fraca e menos disposta a tentar reconstruir-se.
Talvez fossem as pedras do mosaico, desgastadas e escassas.
Ainda assim, de tempos em tempos, ela era assassinada.
Palavras ditas (ou jamais pronunciadas), gestos,
comportamentos, pequenas e grandes agressões, mentiras, e mesmo um sentimento
de inadequação lhe subtraiam facilmente uma parcela da alma.
“uma pedrinha tão pequena não há de fazer falta a um
rochedo”.
Aqueles com os quais interagia possivelmente não sabiam que,
do rochedo, restava apenas a aparência.
“o essencial é invisível aos olhos” e restava-lhe pouco da
essência.
Quão contraditórios são os seres humanos. Amam (ou amaram) –
assim o dizem, mas assassinam a quem os ama.
Quanta percepção falta às pessoas – ou quanta
insensibilidade lhes sobra. Matam sem perceber, matam por prazer, matam para
alimentar sua vaidade, pisam em sonhos que não souberam sonhar, roubam amor que
não pretendem dar e, ao final do espetáculo batem a porta atrás de si e voltam
aos seus mundinhos perfeitos, castelos de areia. Levam consigo a poeira de mais
uma pedra do mosaico partido. Quem se importa?
Talvez só percebam que ela foi efetivamente assassinada
quando do mosaico restar apenas o pó.
Alguns deles pensam: mas existe “a outra”. Estão tão presos
as verdades que criaram para si que não percebem que a “outra” não vive sem a
primeira, e a primeira ...de tempos em tempos ela é assassinada.
Mara Barrionuevo