terça-feira, 5 de abril de 2011

Veneno Antimonotonia

Li o livro Psicoterapia Existencial aos 16 anos de idade.
Nada demais para quem lia Kafka aos 14, numa prematura e desesperada tentativa de entender em que planeta havia aterrissado.
De Kafka, faz pouco que li Carta ao Pai. Psicoterapia Existencial ... a existência se encarregou de me colocar em psicoterapia.
Mas desse livro uma passagem ficou. Em algum lugar o autor diz que nascemos como uma folha em branco. Não lembro exatamente do texto, mas lembro da idéia: "uma folha em branco que vai sendo preenchida com as impressões/valores passados pelos pais e, mais tarde, pela sociedade".
Óbvio que a soma de nossas vivências se encarrega de reescrever o texto e, lá pelas tantas, o manuscrito original se transforma em rascunho jogado em algum fundo de gaveta.
Na teoria, somos a soma de nossas experiências. Soma de experiências ... papo complexo esse.
Mas ... deixando de lado os paradigmas que regem a filosofia existencialista de seres em profusão em busca de forma concreta e seu conseqüente resultado na formação de personalidade e caráter próprios a universos pessoais únicos (putz ... me puxei nesse amontoado de palavras sem vírgulas e sem nexo), vou deitar aqui minha sabedoria filosófica de almanaque.

O que eu vivo hoje é sim resultado de minhas experiências. Traumas de infância, surras na adolescência, estupro, seqüestro, amores mal resolvidos, amores amados, correspondidos e bem vividos, doses generosas de infelicidade, doses generosas de momentos felizes, fracassos, sucessos, solidão, festas, lágrimas, gargalhadas e uma coleção de tralhas. Sou eu.
Fundo do poço, beijinho na Samara, escala de volta, cai no chão, levanta, sacode a poeira e alguém passa por cima. Levanta de novo - e, quando eu levantar, corre - morrer e renascer, morrer e renascer.
Agora aqui, de pé, pronta para a próxima. Sem medo, sem pé atrás ... doida varrida. Eu.

E você? Tem o plano perfeito para a vida certinha, politicamente correta, hipocritamente sorridente, mentirosamente feliz, socialmente exemplar?
Fez seu plano de aposentadoria, seu investimento na bolsa para a viagem dos sonhos, seu planejamento estratégico para os próximos 5 anos?
Decidiu qual de seus muitos sorrisos vai usar quando parabenizar por grandes feitos aquele sujeito que você não suporta? Decidiu qual a cor do sapato que combina com o lançamento daquele livro que você vai comprar - com autógrafo, mas que nunca vai ler?
Olhou bem no espelho para ver se não há um único fio de cabelo fora do lugar quando chegar, com seu perfeito par, naquele evento social chato de matar?

Tudo certinho, no lugar, cada coisa onde deve estar?
E quando essa farsa se torna insuportável você, quem diria
vem se abastecer de gente louca como eu ... veneno antimonotonia.

Ah, larguei Kafka de mão. Estou na fase Dostoievisky.
E, como ando lendo Notas do Subterrâneo é por um triz
que não te digo: ligue o foda-se e seja
feliz.

Tá faltando homem

“Tá faltando homem que assuma seus afetos, homem que se apaixone. E que se dane que os outros pensem ou que a sociedade aplauda ou condene. Tá faltando homem que agüente as conseqüências de seus desejos e que defenda as razões de seu coração. Tá faltando homem.”
(Pedro Bial)

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Faz de Conta

Não respondo teus e-mails, e quando respondo sou ríspido, distante, mantenho-me alheio:
FAZ DE CONTA QUE EU TE ODEIO

Te encho de palavras carinhosas, não economizo elogios, me surpreendo de tanto afeto que consigo inventar, sou uma atriz, sou do ramo:
FAZ DE CONTA QUE EU TE AMO.

Estou sempre olhando pro relógio, sempre enaltecendo os planos que eu tinha e que os outros boicotaram, sempre reclamando que os outros fazem tudo errado:
FAZ DE CONTA QUE EU DOU CONTA DO RECADO.

Debocho de festas e de roupas glamurosas, não entendo como é que alguém consegue dormir tarde todas as noites, convidados permanentes para baladas na área vip do inferno:
FAZ DE CONTA QUE EU NÃO QUERO.

Choro ao assistir o telejornal, lamento a dor dos outros e passo noites em claro tentando entender corrupções, descasos, tudo o que demonstra o quanto foi desperdiçado meu voto:
FAZ DE CONTA QUE EU ME IMPORTO.

Digo que perdôo, ofereço cafezinho, lembro dos bons momentos, digo que os ruins ficaram no passado, que já não lembro de nada, pessoas maduras sabem que toda mágoa é peso morto:
FAZ DE CONTA QUE EU NÃO SOFRO.

Cito Aristóteles e Platão, aplaudo ferros retorcidos em galerias de arte, leio poesia concreta, compro telas abstratas, fico fascinada com um arranjo techno para uma música clássica e assisto sem legenda o mais recente filme romeno:
FAZ DE CONTA QUE EU ENTENDO.

Tenho todos os ingredientes para um sanduíche inesquecível, a porta da geladeira está lotada de imãs de tele-entrega, mantenho um bar razoavelmente abastecido, um pouco de sal e pimenta na despensa e o fogão tem oito anos mas parece zerinho:
FAZ DE CONTA QUE EU COZINHO.

Bem-vindo à Disney, o mundo da fantasia, qual é o seu papel? Você pode ser um fantasma que atravessa paredes, ser anão ou ser gigante, um menino prodígio que decorou bem o texto, a criança ingênua que confiou na bruxa, uma sex symbol a espera do seu cowboy:
FAZ DE CONTA QUE NÃO DÓI.

Martha Medeiros