quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Viver a Vida

Certa vez, caminhando entre os corredores do cemitério da Recoleta, me deparei com um grupo de turistas em torno de um homem. Esse homem, usando roupas surradas e óculos escuros de lentes baratas e sujas, encontrava-se na frente do mausoléu da família Duarte, local onde hoje encontra-se o túmulo de Evita Péron (digo hoje porque o corpo já esteve em diversos países por razões políticas, mas no momento não vem ao caso).
Esse homem simples contava a história de Evita  e da própria Argentina de forma magistral. Conhecia todos os nomes das personalidades políticas, as datas em que os fatos aconteceram e expunha o como e o porquê do corpo de Evita estar naquele mausoléu.

Quando terminou de nos contar a longa saga da estadista e do período político no qual viveu, os turistas aplaudiram e grande parte deles lhe ofereceu alguns trocados, dinheiro esse que ele recusou.
Quando se dispersaram, resolvi cumprimentá-lo e elogiei sua eloquência de um grande contador de histórias. Ele agradeceu entusiasmado e pareceu-me que, para ele, o reconhecimento de seu talento era infinitamente mais importante do que os dólares e pesos que lhe ofereciam.
Virei as costas, mas ele me puxou pelo braço. Disse que gostaria de me mostrar outras coisas.
Me levou por corredores e, por vezes, parava em frente a outros mausoléus e me contava histórias magnificas de quem ali estava enterrado.
Embora fascinada com a cultura e a forma poética de contar histórias de meu novo e estranho amigo, comecei a me preocupar: não sabia mais em que parte do cemitério andava, tampouco como sair dali.
Disse a ele que precisava ir embora, mas ele respondeu: - tenho um último lugar para lhe mostrar.
Me levou por entre os corredores até um banco de cimento e me pediu para sentar nele. Sentei e ele declamou com maestria o lindo poema de Jorge Luis Borges, Viver a Vida. Terminado o poema, me perguntou: - sabe por que lhe pedi para sentar ai? Respondi: não! Ele me disse então que foi sentado naquele mesmo banco de cimento que Borges havia criado o poema. Me emocionei muito.
Meu novo e estranho amigo me levou então à saída do cemitério, mas antes de nos despedirmos ele me explicou o significado dos símbolos internos e externos que ficam no mural, sobre a entrada do cemitério. Sai e ele ficou. Olhei para trás e ele não estava mais lá.
Pensei então: - será que ele PODE sair de lá?
Essa história pode lhes parecer surreal, mas faz parte de minha história e, assim como tantas outras que teria para contar, me faz sentir uma pessoa privilegiada por ter vivido tantas histórias 'surreais'.

O poema de Borges traduz o que desejo para minha vida em 2015 e para os anos vindouros.
Traduz o que desejo para meus amigos reais e virtuais, para minha família biológica e a família de irmãos de coração e alma, para meus amores e ex-amores. Enfim, para todos nós.
Feliz vida nova!



VIVER A VIDA

Se eu pudesse novamente viver a vida...
Na próxima...trataria de cometer mais erros...
Não tentaria ser tão perfeito...
Relaxaria mais...
Teria menos pressa e menos medo.
Daria mais valor secundário às coisas secundárias.
Na verdade bem menos coisas levaria a sério.
Seria muito mais alegre do que fui.
Só na alegria existe vida.
Seria mais espontâneo...correria mais riscos, viajaria mais.
Contemplaria mais entardeceres...
Subiria mais montanhas...
Nadaria mais rios...
Seria mais ousado...pois a ousadia move o mundo.
Iria a mais lugares onde nunca fui.
Tomaria mais sorvete e menos sopa...
Teria menos problemas reais...e nenhum imaginário.
Eu fui dessas pessoas que vivem  preocupadamente
Cada minuto de sua vida.
Claro que tive momentos de alegria...
Mas se eu pudesse voltar a viver, tentaria viver somente bons momentos.
Nunca perca o agora.
Mesmo porque nada nos garante que estaremos vivos amanhã de manhã.
Eu era destes que não ia a lugar algum sem um termômetro...
Uma bolsa de água quente, um guarda chuvas ou um paraquedas...
Se eu voltasse a viver...viajaria mais leve.
Não levaria comigo nada que fosse apenas um fardo.
Se eu voltasse a viver
Começaria a andar descalço no início da primavera e...
continuaria até o final do outono.
Jamais experimentaria os sentimentos de culpa ou de ódio.
Teria amado mais a liberdade e teria mais amores do que tive.
Viveria cada dia como se fosse um prêmio
E como se fosse o último.
Daria mais voltas em minha rua, contemplaria mais amanheceres e
Brincaria mais do que brinquei.
Teria descoberto mais cedo que só o prazer nos livra da loucura.
Tentaria uma coisa mais nova a cada dia.
Se tivesse outra vez a vida pela frente.
Mas como sabem...
Tenho 88 anos e sei que...estou morrendo."

Jorge Luis Borges

E ele nunca ganhou um Nobel de literatura ...

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