segunda-feira, 16 de março de 2015

MULHERES E VACAS



Então ... criaram o Dia Internacional da Mulher – confesso que estou me lixando para o 8 de março, porque sou mulher todos os dias.
Há pouco mais de uma semana, de uma forma ou de outra, nos homenagearam com mensagens, postagens bonitinhas nas redes sociais, programação cor-de-rosa na TV.
Os homens ofereceram bombons e rosas para as namoradas, as esposas. As levaram para jantar fora. Alguns almoçaram com suas mães, levaram flores para suas funcionárias, cumprimentaram aqui e ali.
Afinal, mulher merece respeito. São as namoradas, amigas, esposas, trabalhadoras. É do ventre delas que nascem as crianças e dos seus seios que são alimentadas. 

Mulheres foram torturadas, queimadas em fogueiras, objetificadas, tratadas como seres inferiores e nem sequer tinham direito à alma. Mas Inquisição é coisa de um passado negro, e os três séculos de Era das Fogueiras já aparecem até em meia página de alguns livros de história.
Hoje mulheres são vítimas de agressão física, verbal, emocional; são estupradas, prostituídas, vendidas em mercados negros, mutiladas.
Mas os tempos mudaram. Hoje os homens conscientes também se revoltam com essas agressões. Alguns até simpatizam com os movimentos feministas ou, pelo menos, com as lutas por igualdade e respeito entre os gêneros. É, as coisas mudaram. O ranço arcaico patriarcal que jogou as mulheres no armário das vassouras, que as tratava como menos que nada, que as agredia com as bênçãos da sociedade, que as humilhava, não mais é aceito pelos homens modernos e civilizados.
As coisas mudaram?

Ontem uma imensa parcela da população foi às ruas lutar por seus direitos, por uma sociedade justa, pelo fim da corrupção. Foram postados milhares de recados de indignação nas redes sociais. O alvo dos protestos era uma mulher, a presidente da República.
E, seja contra homem, mulher ou lobisomem, é justo e necessário protestar, reivindicar, mostrar sua indignação quando o país perde o rumo.
Era uma mulher. Poderia ter sido (e foi) chamada de corrupta, incompetente, engodo, mentirosa ... dá o fora porque você enganou o povo, aumentou o preço de tudo, sabia dos desvios da Petrobrás, acobertou ladrões em seu partido. Acusações cabíveis de um povo revoltado. Mas xingamentos políticos-sociais não foram suficientes para que o povo demonstrasse sua indignação.

Era uma mulher. Então, nas redes sociais, nos cartazes, nas vozes ela também foi chamada de vaca, ordinária, puta, cadela, vagabunda e toda a sorte de palavrões e ofensas que criaturas machistas e misóginas são capazes vomitar, porque fazem parte de sua listinha acéfala, guardada para as ocasiões nas quais se julgam no direito de humilhar uma mulher da forma mais escrota possível.

Foi bem triste ver que mulheres também vomitaram palavras humilhantes. Essas ainda não acordaram do pesadelo patriarcal, não reconhecem seu próprio valor. Se reconhecessem, saberiam que quando se humilha com palavras tão escrotas uma mulher, se está humilhando a todas as mulheres. A Dilma era a bola do dia. A bola do dia amanhã pode ser você, sua filha, sua irmã, sua mãe. 

E você ai, rapaz. Você que distribuiu rosas e elogios às mulheres em 8 de março: se uma mulher no volante destruir seu carro, você vai chama-la de maneta, motorista incompetente, não olha por onde anda? comprou a carteira?, ou vai bradar um: - cadela, você destruiu meu carro, sua filha da puta. Enfia sua carteira no cu!  E se for sua mãe, irmã, namorada, esposa a destruir um carro? Como quer que seja tratada?

Ontem foi com a Dilma, mas também foi com a Maria, a Joana, a Mara, a Cristina. Nós, vacas, putas, vagabundas, cadelas, ordinárias.
Ontem a democracia venceu. Mas o machismo, a falta de respeito e a misoginia venceram também, mais uma vez.


domingo, 8 de março de 2015

MULHER NA CONTRA MÃO



Dia Internacional da Mulher. Dia do Índio, Dia do Orgulho Gay, Dia da Consciência Negra. Quem tem um ‘dia’? Aqueles que se encontram, aos olhos da sociedade, na categoria das minorias. Quem faz parte das minorias? Os discriminados, que em pleno século XXI precisam ainda lutar por direitos iguais aos da maioria.
Se mulheres, índios, negros e gays são minoria, me dou o direito de entender por maioria os heteros, machos e brancos.

De minha parte, agradeço o Dia Internacional da Mulher, mas dispenso; sou mulher todo santo dia.
Não precisamos de Dia Internacional criado em homenagem às mulheres que morreram queimadas em uma fábrica. Precisamos é que parem de nos queimar todos os dias.

Nos queimaram antes, milhares de nós, nas fogueiras da Inquisição (dai me dou conta de que, seguindo a lógica da homenagem às mulheres queimadas na fábrica, falta o Dia Internacional das Bruxas).
Mulheres continuam sendo metaforicamente queimadas todos os dias: são queimadas quando sofrem violência doméstica, quando são vítimas de agressão física e/ou verbal, quando são estupradas, quando são obrigadas a lutarem por salários iguais aos dos homens, quando sofrem sequelas ou até mesmo morrem por conta de abortos clandestinos – e ai virão os defensores da vida com seu Estatuto do Nascituro. A esses só posso dizer: durante os três séculos da Inquisição, as mulheres não tiverem sequer direito a uma alma. Hoje, as leis não permitem que as mulheres tenham direito sobre seus corpos. Condenam o aborto, mas esquecem do aborto masculino. Aos homens é dado o direito de engravidar uma mulher, abandoná-la e seguir por ai fazendo filhos. São garanhões, e ser garanhão é ser ‘o cara’.
A mulher grávida e o filho gerado que ele abandonou que se danem. Aborto? Cadeia para ela.
Então, cadeia pra ele também. Afinal, é co-autor do aborto.
Querem mesmo nos mostrar seu admiração e respeito?
Digam NÃO a agressão, ao estupro, a pedofilia, a criminalização do aborto, a exploração sexual, ao aliciamento de meninas para prostituição, a misoginia.

Dia da mulher, do índio, da consciência negra, do orgulho gay. Ah quase esquecendo que Papai Noel e Coelhinho da Páscoa também tem seu dia.
Aposto que os negros que se orgulham de sua cor, os índios que se orgulham de sua etnia e os gays que estão se lixando para uma sociedade homofóbica, também estão se lixando para os ‘seus dias’.

Como diz aquela música: todo dia, era dia de índio. E por falar em música, adoro Pagú, da Rita Lee, mas há nela uma frase que considero nonsense: ‘sou mais macho que muito homem’. Não quero ser mais macho que um homem. Sou mulher. Fêmea.  

Ops ... lembrei de outras músicas:
‘Mirem-se no exemplo das mulheres de Athenas. Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas.  Elas não têm gosto ou vontade. Nem defeito nem qualidade. Têm medo apenas. Não têm sonhos, só têm presságios.’ Te gosto, Chico, mas pegue suas Mulheres de Athenas e vá passear na floresta, enquanto Seu Lobo não vem!
‘Amélia é que era mulher de verdade. Amélia não tinha a menor vaidade’. Enquanto isso, na Patagônia, o homem da Amélia tá de caso com a vizinha. Amélia com a barriga no fogão, o cara na rua fazendo festinha.

E, por falar em ser Dia Internacional, lembrei de um texto humorístico que fala sobre as vantagens de ser mulher.
O texto diz que não brochamos, não ficamos carecas, sentar de pernas cruzadas não dói, fazemos tudo que um homem faz e de salto alto!
(deixa eu contar um segredo: brochamos sim, quando nos tratam como objetos, quando dizem a frase errada, quando percebemos que é só sexo e não vai dar em nada)
Mas esse mesmo texto fala de outras coisas: a programação da TV é 90% voltada para nós, não pagamos conta; no máximo, rachamos,  e vai por ai ...

Ainda não desconfiaram que mulher tem mais o que fazer do que chorar vendo novela, assistir Ana Maria Brega e Silvio Saco, copiar receitinhas daquele cara que já foi acusado de pedofilia, ou sair correndo para as Casas XYZ fazer seu carnezinho em 24 prestações sem entrada, por conta daquela propaganda descarada?
Não pagamos conta; no máximo, rachamos ...
Quantas mulheres sustentam a casa, o marido desempregado e os filhos com o seu trabalho?
Quantas mulheres dão hoje pensão alimentícia ao filho que mora com o ex-marido?
Quantas vão para o barzinho à noite, e pagam não apenas sua própria como, por vezes, a conta de um amigo desmonetarizado?
Mas muitas mulheres racham sim: racham o aluguel, as compras do mês, a escola dos filhos com seus maridos. Justo, se os salários forem iguais.
Ah, algumas também racham a cara de quem lhes falta com o respeito.

Adoro sim ser mulher, apesar da cólica menstrual - mulher é bicho esquisito .. todo mês sangra, apesar de ter enxaqueca, de chorar por 'defunto vivo', leite derramado, amor mal amado.
Adoro ser uma mulher de 55 anos e não ter de plástica, silicone, botox ou fio russo para atender ao padrão estético do patriarcado ou a necessidade dos homens na 'idade da girafa' - aqueles que passaram a muito dos 40, mas só querem os brotinhos.

Mulheres modernas são românticas, choronas, frágeis, amam seus homens. Mulheres modernas vão à luta, namoram, casam, descasam, moram sozinhas, dirigem seus carros, pagam suas contas. Mulheres modernas vestem jeans e camiseta e andam de cara lavada. Mulheres modernas adoram um batom vermelho, um salto 10 e um vestido sexy.
Mulheres modernas aceitam seus corpos e os mantém ’originais de fábrica’. Mulheres modernas fazem plástica, usam botox,  silicone, fio russo e odeiam a celulite.
Mulheres modernas acham lindo parir, cuidam das crias e da família. Mulheres modernas optam por não ter filhos e investir na carreira. Mulheres modernas estão em todos os lugares: na presidência de grandes empresas ou servindo cafezinho nelas. São jornalistas, médicas, garis, faxineiras, professoras, lavadeiras, advogadas, caixas de supermercado. Fazem yoga, pilates, boxe, muay thai.  Mulheres modernas comem um pote de sorvete assistindo TV. São feiticeiras. São ateias. São o que quiserem. São mulheres.
Não se curvam ao patriarcado; caminham com seus homens (ou com suas mulheres) lado a lado.

Aos que nos cumprimentaram hoje por respeito e admiração: obrigada!
Aos que nos cumprimentam por nos considerarem minoria: peguem aquela rosa que oferecem automaticamente às mulheres em 8 de março, tirem os espinhos para não fazer dodói e enfiem ... bom, vocês sabem onde!

“Porque há o direito ao grito. Então eu grito.”

Clarice Lispector

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Viver a Vida

Certa vez, caminhando entre os corredores do cemitério da Recoleta, me deparei com um grupo de turistas em torno de um homem. Esse homem, usando roupas surradas e óculos escuros de lentes baratas e sujas, encontrava-se na frente do mausoléu da família Duarte, local onde hoje encontra-se o túmulo de Evita Péron (digo hoje porque o corpo já esteve em diversos países por razões políticas, mas no momento não vem ao caso).
Esse homem simples contava a história de Evita  e da própria Argentina de forma magistral. Conhecia todos os nomes das personalidades políticas, as datas em que os fatos aconteceram e expunha o como e o porquê do corpo de Evita estar naquele mausoléu.

Quando terminou de nos contar a longa saga da estadista e do período político no qual viveu, os turistas aplaudiram e grande parte deles lhe ofereceu alguns trocados, dinheiro esse que ele recusou.
Quando se dispersaram, resolvi cumprimentá-lo e elogiei sua eloquência de um grande contador de histórias. Ele agradeceu entusiasmado e pareceu-me que, para ele, o reconhecimento de seu talento era infinitamente mais importante do que os dólares e pesos que lhe ofereciam.
Virei as costas, mas ele me puxou pelo braço. Disse que gostaria de me mostrar outras coisas.
Me levou por corredores e, por vezes, parava em frente a outros mausoléus e me contava histórias magnificas de quem ali estava enterrado.
Embora fascinada com a cultura e a forma poética de contar histórias de meu novo e estranho amigo, comecei a me preocupar: não sabia mais em que parte do cemitério andava, tampouco como sair dali.
Disse a ele que precisava ir embora, mas ele respondeu: - tenho um último lugar para lhe mostrar.
Me levou por entre os corredores até um banco de cimento e me pediu para sentar nele. Sentei e ele declamou com maestria o lindo poema de Jorge Luis Borges, Viver a Vida. Terminado o poema, me perguntou: - sabe por que lhe pedi para sentar ai? Respondi: não! Ele me disse então que foi sentado naquele mesmo banco de cimento que Borges havia criado o poema. Me emocionei muito.
Meu novo e estranho amigo me levou então à saída do cemitério, mas antes de nos despedirmos ele me explicou o significado dos símbolos internos e externos que ficam no mural, sobre a entrada do cemitério. Sai e ele ficou. Olhei para trás e ele não estava mais lá.
Pensei então: - será que ele PODE sair de lá?
Essa história pode lhes parecer surreal, mas faz parte de minha história e, assim como tantas outras que teria para contar, me faz sentir uma pessoa privilegiada por ter vivido tantas histórias 'surreais'.

O poema de Borges traduz o que desejo para minha vida em 2015 e para os anos vindouros.
Traduz o que desejo para meus amigos reais e virtuais, para minha família biológica e a família de irmãos de coração e alma, para meus amores e ex-amores. Enfim, para todos nós.
Feliz vida nova!



VIVER A VIDA

Se eu pudesse novamente viver a vida...
Na próxima...trataria de cometer mais erros...
Não tentaria ser tão perfeito...
Relaxaria mais...
Teria menos pressa e menos medo.
Daria mais valor secundário às coisas secundárias.
Na verdade bem menos coisas levaria a sério.
Seria muito mais alegre do que fui.
Só na alegria existe vida.
Seria mais espontâneo...correria mais riscos, viajaria mais.
Contemplaria mais entardeceres...
Subiria mais montanhas...
Nadaria mais rios...
Seria mais ousado...pois a ousadia move o mundo.
Iria a mais lugares onde nunca fui.
Tomaria mais sorvete e menos sopa...
Teria menos problemas reais...e nenhum imaginário.
Eu fui dessas pessoas que vivem  preocupadamente
Cada minuto de sua vida.
Claro que tive momentos de alegria...
Mas se eu pudesse voltar a viver, tentaria viver somente bons momentos.
Nunca perca o agora.
Mesmo porque nada nos garante que estaremos vivos amanhã de manhã.
Eu era destes que não ia a lugar algum sem um termômetro...
Uma bolsa de água quente, um guarda chuvas ou um paraquedas...
Se eu voltasse a viver...viajaria mais leve.
Não levaria comigo nada que fosse apenas um fardo.
Se eu voltasse a viver
Começaria a andar descalço no início da primavera e...
continuaria até o final do outono.
Jamais experimentaria os sentimentos de culpa ou de ódio.
Teria amado mais a liberdade e teria mais amores do que tive.
Viveria cada dia como se fosse um prêmio
E como se fosse o último.
Daria mais voltas em minha rua, contemplaria mais amanheceres e
Brincaria mais do que brinquei.
Teria descoberto mais cedo que só o prazer nos livra da loucura.
Tentaria uma coisa mais nova a cada dia.
Se tivesse outra vez a vida pela frente.
Mas como sabem...
Tenho 88 anos e sei que...estou morrendo."

Jorge Luis Borges

E ele nunca ganhou um Nobel de literatura ...